Todo espelho tem uma Alice

Redação
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Volta Redonda – Desde cedo, entendi que o espelho nem sempre reflete quem somos. Às vezes, ele mostra uma imagem moldada por terceiros, apenas o que o mundo quer ver da gente. No meu caso, esse reflexo tem olhos puxados e carrega o peso de uma “minoria exemplar”: disciplinada, silenciosa, inteligente… Obrigatoriamente… Ai de mim se contrariar esta expectativa.

Cresci sendo tratada como japonesa, mesmo tendo nascido no Brasil e tendo herdado, também, o sangue de italianos por parte de mãe. Mas essa metade quase nunca interessa.

Quando só metade da história importa

Sempre que conto que sou 50% japonesa e 50% italiana, escuto:

“Ah, mas sua mãe já misturou, né? Sua porção japonesa é mais forte.”

E eu me pergunto: por quê?

Por que a minha mãe, neta de italianos, já foi absorvida pela ideia de um Brasil branco e europeu, e meu pai, também nascido aqui, permanece visto como estrangeiro? Por que só a parte japonesa é visível — e, mais ainda, é a única que posso “representar” socialmente?

Essa representação, no entanto, não é livre. É cercada de estereótipos. Esperam de mim o domínio da língua japonesa, da culinária tradicional, a visita obrigatória ao Japão, a dupla cidadania, o respeito a tradições que nunca me foram passadas.

 

A herança invisível e o peso do silêncio

Meus avós japoneses faleceram antes mesmo dos meus pais se casarem. Meu pai, marcado por uma vida de bullying, guardava mais mágoas do que histórias. Não compartilhou o idioma nem as raízes. E eu cresci com lacunas, com perguntas que não sabia responder — e com olhares de reprovação por isso.

Ouvi mais de uma vez que era “japonesa do Paraguai”. Como se eu devesse encenar um papel que nem conhecia. Como se minha identidade fosse performance, e eu estivesse falhando no roteiro.

Mas não foi só isso. Ser mulher asiática no Brasil é carregar, além do preconceito, a hipersexualização. Um tipo de racismo disfarçado de elogio:

“Todo homem quer sair com uma japonesa.”

“Nossa, todo homem fetiche por japonesa, sorte sua.”

Como se fosse uma dádiva ser vista como objeto de desejo, e não como pessoa. Como se isso nos obrigasse a aceitar nosso “lugar” — servil, submissa, moldada para agradar.

Mas eu não me encaixo nessa moldura. E, talvez por isso, me chamem de exigente. Eu, que deveria ser “fácil”, sou tida como difícil.

Isso não é frieza. É resistência.

A verdade é que me tornei exigente porque aprendi a me proteger.
Se todos dizem que tenho algo que todos os homens desejam, então eles que façam por merecer.

Isso não é frieza.

É resistência.

E mesmo assim, quando eu amo, me entrego. Me mostro. Me vulnerabilizo. E aí, de novo, caio em outra armadilha: a mulher idealizada, a que deve curar, acolher, salvar. E me vejo lidando com a pressão de corresponder à imagem do sagrado feminino — da mãe, da santa, da abnegada.

 

Espelhos e milagres

Foto: Freepik

Percebo, então, que essa cobrança atravessa todas as mulheres. Não importa a cor, a origem, o rosto. Sempre se espera de nós um milagre.

Mas eu já não quero ser milagre.

Quero olhar no espelho e não ver uma personagem.

Quero me ver como sou: filha de duas histórias — italiana e japonesa — e dona da minha própria narrativa.

Todo espelho tem uma Alice.

A minha aprendeu a atravessar o vidro.

 

Rebeca Nishi

Neta de japoneses, bisneta de italianos, nascida em Volta Redonda. É coordenadora institucional na ACIAP-VR, vice-presidente do CMEC-VR, instrutora de yoga, co-apresentadora do podcast The Hop This Wei Show, escritora na revista americana Spoiler Magazine, é criadora, roteirista e apresentadora do canal de YouTube Chá Com Arroz.

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