
Pavor, pânico, medo, terror. São alguns dos sentimentos que podem traduzir o que tem vivido a população da Baixada Campista. Uma região assombrada por um cenário que antes parecia realidade distante e agora se faz cada vez mais presente. São práticas de extorsão, ameaças, mortes e domínio de território por meio da força. Atividades de milícia privada se instalando na maior cidade do Norte Fluminense. Para especialistas ouvidos pelo J3, o termo correto para definir a situação é “milícia privada”, já que o termo “milícia” sugere participação de agentes do Estado, o que não seria o caso.
O tema que assusta moradores há pelo menos dois anos na Baixada voltou à tona nos últimos dias. O termo milícia particular se aplica porque não há em nenhum dos casos relatados por testemunhas ou investigados pela Polícia desde 2023, o envolvimento de qualquer agente do Estado. São, portanto, práticas similares, mas sem a estrutura tradicional das milícias. Em Campos, os registros apontam para traficantes agindo como milicianos.
No dia 24 de julho, uma ação conjunta entre as polícias Civil e Militar prendeu um homem apontado como chefe do tráfico de drogas na localidade de Poço Gordo. Ele foi preso sob acusação de extorquir comerciantes da região, obrigando-os a pagar mensalidades para evitar represálias. De acordo com as investigações, aqueles que se recusavam a pagar eram ameaçados e, em alguns casos, obrigados a fechar seus estabelecimentos por medo da quadrilha.
Na última segunda-feira (28), agentes da Polícia Ambiental identificaram um aterro irregular às margens da lagoa em Farol de São Thomé. Informações repassadas aos policiais no local dão conta de que os responsáveis seriam traficantes daquela localidade e que caminhões eram vistos despejando materiais no local, com intuito de construir casas. A exploração de terrenos dessa forma é mais uma característica das atividades de milícia, muito comuns, por exemplo, na Zona Norte do Rio de Janeiro.

As ocorrências voltaram a chamar a atenção para a incidência de casos relacionados a práticas com perfil de milícia na Baixada Campista. O caso mais emblemático aconteceu em janeiro de 2024. Em plena temporada de verão, à luz do dia de um domingo, um comerciante foi morto a tiros dentro do seu próprio supermercado, em Farol de São Thomé. Amaro Nilton era muito conhecido na praia. Ele estava trabalhando, quando foi assassinado com vários tiros na cabeça. Testemunhas relataram que os autores foram dois homens em uma motocicleta, vestidos de preto e com capacetes.
O estabelecimento onde o crime aconteceu ficava bem próximo do Destacamento de Policiamento Ostensivo (DPO) de Farol. O que não inibiu os criminosos. Comerciantes e moradores relataram à época que ameaças vinham sendo cometidas por bandidos que vivem na localidade. A cobrança de propinas estaria sendo cometida pelos criminosos em troca de “segurança e conivência” com o comércio ilegal de drogas na área.
Em 26 de dezembro de 2023, outro assassinato já havia chamado atenção na praia da cidade. O taxista identificado como Sandro Siqueira, conhecido como Sandro “Geleia”, foi morto dentro do seu carro, com vários tiros, no Xexé. Ele estava com sua esposa no veículo. Ela não se feriu. Testemunhas informaram à Polícia Militar que dois homens se aproximaram numa motocicleta e efetuaram os disparos. Mais uma vez, dois homens em uma moto. E essa não era a única relação entre os casos. Sandro também era comerciante.
Relatos
Esses crimes não foram casos isolados e que ficaram para trás. Eles ecoam até os dias atuais, a cada novo episódio de extorsão e ameaça que acontece na praia e na Baixada. E a incidência só cresce. O J3News recebeu com exclusividade denúncias e relatos de moradores de Farol de São Thomé, que evidenciam atividades de milícia privada na praia da cidade. As autorias dos depoimentos são anônimas, para garantir a segurança e integridade das pessoas envolvidas.
“As pessoas em Farol, principalmente comerciantes estão assustados e há tempos tem recebido ligações de cobranças. Quando aconteceram os assassinatos de dois comerciantes perto da rodoviária da praia, em pleno verão, ‘na cara’ do DPO, todos ficaram mais desesperados ainda. E continua hoje em dia. Eles cobram de mercados, farmácias, até salões de beleza”, relata um morador.
Durante vários anos, um morador que a equipe de reportagem vai chamar de “X” atuou no comércio da praia campista. Tinha clientela fixa e obtinha seu lucro sempre no período do verão, graças à alta temporada. No entanto, há menos de um ano, decidiu fechar o estabelecimento e se mudar, graças ao clima de insegurança e ameaças de suspeitos, ligados ao tráfico de drogas por cobrança de propina em troca de garantir segurança do estabelecimento. O ex-comerciante contou à reportagem que sentia medo da situação antes de fechar o estabelecimento.
“A gente não pode falar nada. Se denunciar, não sei o que pode acontecer a mim e à minha família. Depois que algumas pessoas foram presas na Baixada Campista, vários carros da PM apareceram no Farol, e davam uma sensação maior de segurança. Por aqui, há muito tempo os traficantes de drogas fazem algum tipo de intimidação. A lei do silêncio é necessária para muitas pessoas que moram na região”, disse.
Atuação há pelo menos dois anos
A reportagem fez uma cronologia reunindo ocorrências e operações, que mostram que a Polícia vem brigando há cerca de dois anos para combater a expansão da milícia privada pela Baixada Campista. Em dezembro de 2023, o Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (Gaeco/MPRJ) deflagrou a Operação Alerta Máximo.

A ação cumpriu mandados em endereços da Baixada Campista, contra alvos denunciados pelos crimes de extorsão qualificada, associação criminosa, coação no curso do processo e associação para o tráfico de drogas. Foram cumpridos mandados na Baixada, no Açu (São João da Barra) e até mesmo na Penitenciária de Bangu. Lá, o alvo era o preso Fernando Silva Balbinot, conhecido como “Fernandinho”, apontado como líder da organização. Investigações de inteligência do Gaeco/MPRJ revelaram que o criminoso tinha como meta instaurar uma milícia na Baixada Campista.
Ainda segundo o Gaeco/MPRJ, os denunciados também foram apontados por testemunhas como integrantes do tráfico local e responsáveis pela prática de extorsões na região, oferecendo segurança contra assaltos em troca da contribuição mensal de valores. A denúncia narra diversos episódios de ameaças, invasão à propriedade privada, subtração de valores e desordens. Dois dias depois, mais um alvo da Operação Alerta Máximo foi preso. Um homem suspeito de extorsão, associação criminosa e associação para o tráfico de drogas foi preso no Açu – distrito de SJB, com ligação próxima à Baixada.

Em fevereiro de 2024, um homem suspeito de integrar um grupo que extorquia dinheiro de ceramistas e comerciantes da Baixada Campista foi preso, em uma ação das polícias Civil e Militar. Ele foi filmado ao sair de uma cerâmica localizada na Estrada da Barrinha, em Babosa. A equipe policial acompanhou e filmou o homem ao sair do estabelecimento industrial até ele chegar à frente da sua residência, na mesma localidade. Ao ser abordado, o homem estaria com o valor recebido por extorsão momentos antes.
No mês anterior, outras duas pessoas já haviam sido presas pelo mesmo crime. Um elemento foragido, suspeito de envolvimento em crimes de extorsão e associação para o tráfico, foi preso pela PM. As vítimas eram comerciantes e empresários locais, que vinham sofrendo com ameaças e exigências financeiras. A PM prendeu ainda um homem que tinha mandados de prisão em aberto por extorsão e tráfico de drogas, na localidade de Mussurepe. Ele foi preso sob suspeita de extorquir comerciantes da Baixada Campista.

Modus operandi
Os casos se repetem, com a mesma forma de atuação: envolvidos com tráfico praticando crimes de extorsão, ameaça, domínio de território através da força. A socióloga Luciane Silva explica que o cenário configura práticas de milícia privada:
“São ações de criminosos organizados com perfil de prática de extorsão. Sem a presença de agentes do Estado, não cabe o emprego do termo milícia. Tratam-se de facções atuando com modus operandi semelhante à milícia. O que podemos classificar como milícia privada. A milícia que existe no Rio de Janeiro, por exemplo, ela se sustenta porque tem componentes do Estado dentro dela. O que não é o caso aqui de Campos. São coisas bem distintas. Aqui estamos falando especificamente de milícia privada”, pontua.
O J3 buscou contato com a Polícia Civil para obter atualizações sobre o cenário, mas não recebeu resposta até o fechamento desta matéria. A reportagem também buscou com a PM, para apurar como a Patrulha Rural tem observado a situação, mas obteve apenas informações sobre combate a furtos na região, com queda de 53% nos indicadores.
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